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O sol brilha forte no interior de Goiás, e o índice ultravioleta é frequentemente classificado como “extremo” –parece não haver lugar pior para uma pessoa com uma doença de pele rara como o xeroderma pigmentoso viver.

Ela é caracterizada por uma extrema sensibilidade ao sol: as células da pele sofrem mutações provocadas pela radiação UV. O acúmulo delas causa manchas, escurecimento, engrossamento da pele e aumenta mais de mil vezes a chance do aparecimento de vários tipos de câncer.

O distrito de Araras fica a cerca de 40 km (por estrada de terra) da cidade de Faina, de 7.000 habitantes. O povoado é recordista mundial na prevalência do xeroderma –uma para cada 30 pessoas. No mundo, a doença afeta uma para cada 250 mil.

O fato de um local concentrar tantos casos se deve ao que o professor titular da USP e especialista no reparo de DNA Carlos Menck chama de “azar dos azares”: o encontro geográfico de duas famílias não correlacionadas, que fundaram o povoado, cada uma carregando uma cópia alterada de um gene.

A doença é recessiva –ou seja, os pais podem carregá-la sem desenvolve-la, passando-a aos filhos. O gene em questão é um dos responsáveis pelo reparo de DNA, constantemente afetado pela radiação solar –o tema rendeu o Prêmio Nobel de Química deste ano.

Os pacientes de Araras tem de evitar ao máximo a exposição ao sol e utilizar um potente filtro solar com uma enzima reparadora de DNA.

Com muito cuidado, a expectativa de vida pode até ser mantida. No povoado, no qual boa parte das pessoas se dedica à agricultura, porém, isso é mais difícil.

Quem desenvolve os cânceres de pele costuma ser tratado cirurgicamente –o sofrimento de muitos pacientes vem das repetidas operações.

PACIENTES

A Folha acompanhou uma ação capitaneada pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) na região, que atraiu até pacientes que residem em outros locais. Uma garota de 13 anos viajou desde o Tocantins até o povoado e foi diagnosticada com 12 melanomas. A quantidade de tumores surpreendeu até os médicos.

Outro paciente que se deslocou até o local foi Julimar Flores, 20, que é DJ em casas noturnas de Goiânia. Ele diz ter perdido a conta das operações por conta do aparecimento de tumores: “Não é uma coisa de que eu goste de me lembrar”. Em uma delas, Flores ficou sem o nariz. Ele também perdeu partes dos lábios, das pálpebras e de outras partes do rosto.

Recentemente, os pacientes passaram a ter aposentadoria especial do INSS, mas em boa parte dos casos eles não param de trabalhar.

“É difícil fazer as pessoas se conscientizarem de que elas devem se prevenir. Existe muita resistência”, afirma o geneticista Rafael Souto.

Por outro lado, Menck diz que pelo menos agora há uma “pulga atrás da orelha” das pessoas. “Agora, quando primos ou pessoas que tem casos nas famílias se casam, eles podem fazer o teste para saber as chances de um filho vir a ter a doença.”

“Não é ético interferir impedindo esse tipo de união. O máximo que podemos fazer é dizer a verdade.”

As ações do governo estadual, da SBD e de outras iniciativas não governamentais no povoado de Araras se iniciaram após a criação da Associação Brasileira do Xeroderma Pigmentoso, por Gleice Machado, que teve um filho, Alisson, com a doença.

Até então, muitas pessoas achavam que a doença era contagiosa e que seria fruto de doenças venéreas, como sífilis, de seus antepassados.

A infraestrutura ainda é um dos fatores limitantes. O isolamento é apontando pelos pesquisadores como o fator preponderante para os casamentos consanguíneos.

Antigamente, isso acontecia por causa da divisão de terras, “para ficar na família”, diz Geny Jardim, 66, que perdeu quatro irmãos com a doença.

Hoje, avalia Menck, essas uniões acontecem por causa de um sentimento de união entre as famílias: “As pessoas se conhecem e se apoiaram uma vida inteira. É compreensível que algumas acabem se apaixonando entre si”.

Cláudia Sebastiana Jardim, 37, dona de casa, conta que foi “buscar um marido longe dali”. Os filhos, Jéferson e Gerciane, não tem a doença, mas provavelmente carregam uma cópia mutada do gene –herdado da mãe.

“Eu diria que nem em teoria há algo plausível que possa se tornar uma cura”, diz Menck.


 

FONTE: Folha de São Paulo (clique para ver o vídeo da matéria)