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Todos os dias são notificados, em média, 243 agressões de diferentes tipos (física, psicológica e tortura) contra crianças e adolescentes, entre o nascimento e 19 anos de idade. Em menores de quatro anos foram registrados, pelo menos, 25 casos por dia. Somente no ano de 2019, a soma desses três tipos de registro chega a 88.572 notificações. Cerca de 60% dessas situações tiveram como local de ocorrência declarada o ambiente doméstico e grande parte têm como autores pessoas do círculo familiar e de convivência das vítimas, evidenciando que elas permanecem reféns de seus agressores. 

Os dados foram extraídos pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), com o apoio da equipe da 360° CI, do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), mantido pelo Ministério da Saúde. Apesar do volume significativo de registros, os especialistas acreditam que o número é apenas a ponta do iceberg e que a subnotificação não revela um cenário provavelmente pior.

O médico dermatologista pode atuar ativamente contra o abuso e a violência sexual infantil

Durante o I Simpósio de Dermatologia Pediátrica, da Sociedade Brasileira de Dermatologia – Regional São Paulo, a promotora de Justiça Renata Rivitti apresentou valiosas informações sobre como identificar e tomar providências frente ao abuso e a violência sexual infantil, tendo em vista que o dermatologista e o pediatra podem ser os adultos a primeiro indentificar o grave ocorrido.

Desde 1988, oficialmente, crianças e adolescentes têm o direito de viver sem violência. Com efeito, o artigo 227 da Constituição Federal estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, direitos fundamentais como o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito e viver sem violência, livre de  qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  Noutras palavras, nossa lei maior escolheu colocar todas as crianças e adolescentes em primeiro lugar, distribuindo a responsabilidade pela proteção integral a todas as pessoas. 

A violência contra crianças e adolescentes impacta diretamente a saúde física, mental e o pleno desenvolvimento infantil, podendo ser psicológica, física, sexual e até institucional (art. 4o da Lei 13431/17), sendo esta última aquela decorrente de práticas revitimizadas. 

A violência, em qualquer de suas formas, pode aparecer no consultório por meio de uma revelação espontânea ou de sinais indicativos dela, como queixas, sintomas, manifestações clínicas, dermatológicas, sistêmicas; fazendo-se imprescindível a ampliação da clínica para identificação e compreensão do fenômeno.

Diante da suspeita OU da violência constatada, a partir da compreensão da alta complexidade do fenômeno e da necessária interdisciplinariedade no seu enfrentamento, a Lei 13.431/17, em seu artigo 14, expressamente determina que as políticas intersetoriais implementadas nos sistemas de justiça, segurança pública, assistência social, educação e saúde deverão adotar ações articuladas, coordenadas e efetivas voltadas ao acolhimento e ao atendimento integral às crianças e adolescentes em situação de violência, seguindo algumas diretrizes, como (artigo 14 da Lei 13.431/17):

  • abrangência e integralidade: devendo comportar avaliação e atenção de todas as necessidades da vítima decorrentes da ofensa sofrida;
  • planejamento coordenado do atendimento e do acompanhamento: respeitadas as especificidades da vítima ou testemunha e de suas famílias.

Dever do médico – Notificação Obrigatória

Desde 2011, as notificações de violência doméstica, sexual e outras violências tornaram-se compulsórias para todos os serviços de saúde, públicos ou privados, do Brasil (Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011). 

Em 2014, a Portaria MS/GM nº 1.271, de 06 de junho de 2014, atualizou a lista de doenças e agravos de notificação compulsória atribuindo caráter imediato (em até 24 horas pelo meio de comunicação mais rápido) à notificação de casos de violência sexual e tentativa de suicídio para as Secretarias Municipais de Saúde.

“A notificação compulsória é conceito próprio do direito sanitário e figura na legislação brasileira desde a década de 70. Consiste na ‘comunicação obrigatória à autoridade de saúde, realizada pelos médicos, profissionais de saúde ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, sobre a ocorrência de suspeita ou confirmação de doença, agravo ou evento de saúde pública, descritos no anexo, podendo ser imediata ou semanal ( artigo 2º, inciso VI da Portaria nº 204 de 17 de fevereiro de 2016).” O parágrafo é extraído do documento: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/CAO%20Tutela/NTConjunta_NotificacaoCompulsoria.pdf 

A notificação compulsória configura instrumento de cuidado e garantia de direitos. 

A notificação se constitui como uma primeira etapa para a inclusão de pessoas em situação de violência em linhas de cuidado, a fim de prover atenção integral a essas pessoas e garantir seus direitos”. (…) Endereçada ao sistema de saúde, tem finalidade estatística e seu objetivo principal é conhecer a magnitude e a gravidade das violências e acidentes e fornecer subsídios para definição de políticas públicas, estratégias e ações de intervenção, prevenção, atenção e proteção às pessoas em situação de violência”.

Vale frisar que a mera suspeita de violência já torna obrigatória a notificação. Informações completas sobre o preenchimento e encaminhamento da notificação compulsória podem ser encontradas neste link

Dever do médico – Comunicação externa

Além da notificação compulsória, que visa informar às autoridades sanitárias as situações de violência, é dever legal de todas as pessoas a comunicação e/ou comunicação externa, endereçada a outras autoridades ou instituições, sobre os registros de violência atendidos no âmbito dos seus serviços. 

Em conformidade com o mandamento constitucional, o dever de comunicação da suspeita de violência contra crianças e adolescentes está previsto no artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 13 da Lei 13431/17 (da Lei da Escuta Protegida) e no artigo 23 da recente Lei 14/344/22 (Lei Henry Borel):

Art. 13 ECA – Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. 

Art. 13 Lei 13431/17 – Qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência contra criança ou adolescente tem o dever de comunicar o fato imediatamente ao serviço de recebimento e monitoramento de denúncias, ao conselho tutelar ou à autoridade policial, os quais, por sua vez, cientificarão imediatamente o Ministério Público.

Art. 23 Lei 14.344/22 – Qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente tem o dever de comunicar o fato imediatamente ao serviço de recebimento e monitoramento de denúncias, ao Disque 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ao Conselho Tutelar ou à autoridade policial, os quais, por sua vez, tomarão as providências cabíveis.

Infração administrativa e Crime

A ausência de comunicação pode configurar infração administrativa ou até mesmo crime:

Artigo 245 do ECA: Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche de comunicar à autoridade competente os casos que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente é passível de penalidade, sendo ela uma multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. 

Artigo 26 da Lei 14.344/11: Deixar de comunicar à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou o abandono de incapaz: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.

Frise-se que a comunicação externa não configura quebra de sigilo médico, pois o artigo 73 do Código de Ética Médica veda ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito do paciente. 

NA PRÁTICA

Quais sinais o dermatologista pode analisar, durante a consulta, que pode ser sinal de alerta para o abuso e a violência sexual infantil? 

Ampliar a clínica para eventuais agravos de saúde decorrentes de violência, estabelecer conversa gentil e acolhedora, com a criança /adolescente que facilite a revelação espontânea de fatos, evitando questionamentos diretos com perguntas fechadas, atentando-se para a postura do adulto responsável na consulta, se colaborativa ou não.

O que ele deve fazer assim que notar algo estranho? 

A simples suspeita gera o dever de fazer a notificação compulsória. O manual para tal ação está aqui neste link. Há também o dever de comunicação externa, acionando o Conselho Tutelar no município e/ou a Promotoria de Justiça. Também é possível fazer denúncia anônima pelo Disque 100, ou através de quaisquer dos sistemas previstos na página da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH — Português (Brasil). Em SP, o Ministério Público possui canal on-line de denúncias, com ou sem identificação do denunciante: Notícia de Fato

E o que o médico deve evitar fazer nesses casos? 

Deve-se evitar constranger a criança de qualquer forma, com perguntas diretas e invasivas, ou expô-la perante o responsável que a acompanha. O acolhimento deve ser feito conforme idade e grau de maturidade da criança ou do adolescente, proporcionando-se um espaço seguro para eventual revelação espontânea no momento ou futuramente. Vale reforçar que, independentemente de verbalização pelo/a paciente, a mera suspeita de violência, em qualquer de suas formas, gera a obrigação da notificação e da comunicação.

Indicação de leitura: